Leitura de bordo

Reli dia desses “A destruição do passado”, do jornalista americano Alexander Stille. Sua tese é a seguinte: se a tecnologia representa um ganho incontestável para a descoberta do passado e a preservação da memória, ela também pode ser um perigo. Afinal, sua preponderância pode significar também uma dependência incômoda. Pode ser boa leitura para gente que gosta de tecnologia – mas sem complicações técnicas.

Stille cita o exemplo dos Arquivos Nacionais dos EUA, em Washington, onde estão guardados quatro bilhões de documentos em papel, 9,4 milhões de fotos, 338 mil filmes e vídeos, etc. Como armazenar fisicamente e como digitalizar tanta coisa? Será que vale a pena guardar tudo isso? Somente a Casa Branca, diz Stille, produz anualmente seis milhões de arquivos eletrônicos. Nessas montanhas de dados, o que é essencial e o que é lixo?

Certamente não é de se jogar fora boa parte do material produzido por centenas de homens que, a mando do Pentágono, foram munidos de câmeras para os campos de batalha durante a Guerra do Vietnã. No entanto, nunca haverá técnicos o suficiente para analisar, catalogar e digitalizar as milhares de fitas produzidas durante o conflito – consequentemente, muitas vão se perder.

Pior, diz Stille: as rápidas mudanças nas tecnologias de armazenamento fazem com que, em pouco tempo, as mídias (discos ópticos, LPs ou DVDs, por exemplo) não possam ser lidas por máquinas ou computadores mais recentes. Quem usa computador há algum tempo certamente guarda nas gavetas velhos disquetes embolorados e inúteis, com software há muito tempo fora do mercado, e que rodavam em drives hoje obsoletos. Não é muito diferente do que aconteceu com os LPs: foram-se os toca-discos e ficaram no armário as velhas bolachas.

Stille comenta: se não é garantido que conseguiremos ler as mídias digitais daqui a alguns anos, o jeito é transformar todos os documentos em… papel. Questão delicada. Haja espaço físico.

Delicada também é a situação dos documentos das agências federais americanas. Desde 1989, elas são obrigadas a preservar todos os arquivos de computador e correio eletrônico. Como usam as mais diferentes tecnologias em hardware e software, recuperar esse material significa um pesadelo logístico, como diz Stille. Toda a equipe dos Arquivos trabalhou dois anos e meio somente para fazer uma cópia protegida de todos os registros eletrônicos da era Reagan. Algo estupendo, que certamente deve atiçar os ânimos de muitas empresas privadas da área de armazenamento digital.

É contando casos como este que Stille constrói seu livro. Ele mostra, por exemplo, como uma velha tecnologia de armazenamento e reprodução de dados ajudou a derrubar uma ditadura. Isto aconteceu na Somália, nos anos 70/80.

É uma história interessante. Na Somália, os poetas sempre tiveram prestígio de superastros da indústria pop. Eles traduzem a voz e o sentimento do povo, que se vê na poesia deles e por isso os admira e respeita. Graças a uma população composta basicamente por nômades mal alfabetizados, a palavra falada guarda naquele país africano uma força incomum aqui no nosso planeta ahaha civilizado, tão viciado em TVs, rádios, imprensa e tecnologias de informação. Lá não existem editoras e a tiragem do único jornal não passa de dois mil exemplares. Na Somália, a palavra ao pé do ouvido vale ouro.

Nos anos 70, até que o ditador Siad Barre tentou alfabetizar o povo usando poesia, mas não deu certo. Era complicado, por exemplo, traduzir para algum alfabeto os 28 sons vogais da língua somali. Além disso, os poetas perceberam que a poesia que Barre tentava divulgar era pura propaganda política, desestimulando a leitura. Eles reagiram em versos e longos poemas, divulgados boca a boca, o povo comprou a briga e a ditadura acabou ruindo.

E um curioso fenômeno tecnológico contribuiu para essa “opção” pelo analfabetismo. Diz Stille que, naquela década, um aparelho de alta tecnologia chamado gravador de fitas cassete ganhou o gosto popular por ser barato e por dar conta do recado – literalmente. O raciocínio é basicamente este: para que aprender a escrever se podemos trocar cassetes entre parentes e amigos, fazendo circularem “cartas orais” que divulgam tão bem nossas ideias?

Assim, o povo somali passou diretamente da tradição oral de cultura para a época da reprodutibilidade técnica – pulando, digamos assim, cinco mil anos de história da escrita para cair na era da mídia eletrônica audiovisual. Sim, porque depois dos gravadores surgiram as… câmeras de vídeo. Então não é de se estranhar que a fita registrando o casamento de seu poeta mais querido, Hadrawi, tenha sido uma das mais vendidas naquele país africano, no ano 2000.

Este breve retrato da Somália – onde cinco empresas de telefonia brigam pelo mercado – mostra como a tecnologia tem modificado, de alguma maneira, o registro cultural de alguns povos do planeta, de acordo com Stille. Isto provoca pontos positivos – como derrubar uma ditadura. Mas o problema estaria no outro lado da moeda. A legítima cultura somali, diz o poeta Hadrawi, não está preparada para o bombardeio consumista da cultura ocidental, que ganha o país graças justamente à disseminação da mídia eletrônica audiovisual. Mas aí seria outro assunto.

Fonte:Conexão