Banda larga no Brasil, pior que a da Etiópia? De jeito nenhum!
Índios usam computador durante feira étnica na Chapada dos Veadeiros (GO), em 2010. Foto: Senado Federal
Um estudo realizado pela empresa americana Pando Networks e divulgado em meados de setembro ainda vem dando o que falar. Segundo o levantamento, intitulado Global Download Study, a velocidade média de downloads no Brasil é de 105 KBps, inferior a de países como Etiópia (112 KBps) e Haiti (128 KBps). Desde então, a comparação do Brasil com esses países tem gerado dezenas de manchetes. (Procure, no Google, por “Internet Brasil Etiópia” para entender o que estou dizendo.) Mas será que estamos tão mal assim?
Para compreender melhor essas comparações, pedi ao pessoal da Pando Networks, em Nova York, dados mais detalhados, tanto do ranking global quanto do brasileiro. (Em tempo: a empresa oferece serviços e tecnologias para acelerar a entrega de conteúdo pela Internet – daí seu interesse pelo tema.) Os resultados você confere abaixo.
Pondo os pingos nos bits
A primeira questão a ser esclarecida tem relação com a unidade de medida. A performance dos downloads foi divulgada em kilobytes por segundo (KBps), não kilobits (Kbps); portanto, para compará-la com as velocidades divulgadas pelos provedores, em kilobits, seria preciso pelo menos multiplicar os números por oito, retomando a noção básica de que cada byte tem oito bits (vamos ignorar, aqui, os bits de controle). A média brasileira estaria próxima de 840 kilobits por segundo, ou 0,8 Mbps. Portanto, não é o caso de dizer que a banda larga brasileira equivale à velha conexão discada.
Vamos preservar a unidade de medida empregada pela Pando, de kilobytes por segundo. Segundo a empresa, a pesquisa – feita com base em 27 milhões de downloads realizados por 20 milhões de computadores em 224 países do mundo, entre janeiro e junho de 2011 – apontou que a média aritmética ponderada das velocidades de download foi de 580 KBps (a ponderação indica que o cálculo da velocidade média levou em conta a quantidade de usuários participantes da pesquisa em cada país).
Dessa forma, segundo a Pando o país com melhor velocidade média de download foi a Coreia do Sul (2.202 KBps), seguida de Romênia (1.909 KBps) e Bulgária (1.611 KBps), dois países que há algumas décadas formavam o bloco comunista do Leste Europeu. Nesse rol de nações, ordenado do melhor para o pior, o Brasil aparece lá atrás, em 162.o lugar, com uma acanhada média de 105 KBps. O atraso do atraso.
Puxando para cima
O fato é que, em termos estatísticos, a média aritmética conta apenas uma parte da história. Primeiro, porque, como vimos, trata-se da média ponderada dos países, de acordo com o número de cidadãos conectados em banda larga. Na conta, uns poucos países ricos com milhões de usuários conectados a altas velocidades puxam a média para cima, já que nos países pobres – onde as velocidades costumam ser bem mais modestas – o índice de penetração da Internet é extremamente baixo. Um exemplo: com 154 milhões de habitantes, Bangladesh tinha em 2010, segundo a União Internacional de Telecomunicações (ITU), 60 mil assinantes de uma banda larga fixa no máximo aceitável. No mesmo ano, a Coreia do Sul – líder do ranking – tinha 48,6 milhões de habitantes e 17,6 milhões de assinantes de banda larga da melhor qualidade.
Segundo, porque mesmo que não houvesse a ponderação, a média aritmética continuaria a ser fortemente influenciada por valores extremos. Calculei a média não ponderada das velocidades médias dos mais de 200 países, por exemplo, e cheguei a 295 KBps. Se deixarmos de fora os dez primeiros da lista – Coreia do Sul, Romênia, Bulgária, Lituânia, Letônia, Japão, Suécia, Ucrânia e Dinamarca –, essa média cai para 244 KBps, uma queda nada desprezível de 17%. Considerando a penetração e a rapidez da Internet nesses países, a diferença pode ser até maior.
Se a média tem seus problemas, o jeito é olhar para outro valor de tendência central: a mediana. O valor que separa o grupo de países em dois conjuntos de igual número ficou em 176,5 KBps. Ou seja, metade dos países pesquisados têm velocidade média de download menor que 176,5 KBps (a média “puxada para cima” era de 580 KBps, lembra?). O primeiro quartil – valor que separa os 25% piores dos 75% melhores – ficou em 96,5 KBps, e o terceiro quartil – valor que separa os 25% melhores dos 75% piores -, em 359,5 KBps. O Brasil, com 105 KBps, está entre o primeiro e o segundo quartis.
Tem mais. Para compreender a informação que a média nos traz é preciso analisar de que forma os valores se espalham em torno dela: usamos, para isso, as medidas de dispersão. Por exemplo: participaram da pesquisa 246 cidades brasileiras; neste grupo, a velocidade média de download variou de 328 KBps (em Cachoeirinha-RS) a 61 KBps (em Itapema-SC), com desvio médio de 294 KBps. A mediana – valor que divide o grupo em dois conjuntos com mesmo número de cidades – foi de 125,5 KBps, o que mostra que mais de 50% das cidades pesquisadas têm, em média, uma Internet de banda larga mais rápida que a da Etiópia. Note que, aqui, também há uma diferença causada pela falta de ponderação: a média das velocidades médias das cidades pesquisadas foi de 135 KBps, enquanto a média atribuída ao Brasil pela Pando (que é a média de velocidade de todos os usuários do Brasil que participaram da pesquisa) foi de 105 KBps.
Olho no gráfico
A comparação com a Etiópia torna-se ainda mais desajeitada quando tomamos os números de velocidade média de download das capitais. Em termos de Brasil, as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre e Curitiba, por exemplo, situam-se acima do terceiro quartil (165,5 KBps), o que significa que o desempenho da banda larga nestes locais é, em média, melhor que 75% das cidades brasileiras pesquisadas. O gráfico abaixo mostra a distribuição das cidades brasileiras pesquisadas em relação à velocidade de download (São Paulo está em destaque).
Procurei, junto à Pando Networks, informações sobre como os valores de download da Etiópia se espalhavam em torno da média do país (112 KBps). Na resposta, a assessoria da empresa afirmou que não havia, para aquele país, detalhamento sobre pontos de acesso, o que sugere que a quase totalidade de downloads foi registrada na capital Adis Abeba. Não há, portanto, nem uma “Cachoeirinha” nem uma “Itapema” na Etiópia. Pior: se a Etiópia fosse uma cidade brasileira, 60% das cidades teriam velocidade de download maior que a dela. A média da Etiópia é a mesma da de Mairiporã (SP).
O que os números da Pando Networks mostram, de fato, é que, entre as cidades do Brasil que participaram da amostra, a desigualdade na “distribuição de performance” de banda larga é menor que entre os países do mundo. (Note a diferença na curva dos gráficos do Brasil e do mundo, abaixo; neste último, o declive é mais acentuado.) Tomando como base a média aritmética das velocidades médias de download por cidade (sem utilizar a média ponderada pelo total de usuários por cidade, portanto), o coeficiente de variação (relação entre o desvio padrão e a média) é de 36% e a amplitude total (distância entre o maior e o menor valor observado) é 267. No mundo, a amplitude total chega a 2.189 e o coeficiente de variação, a 110%.
Outra forma de enxergar esse desequilíbrio é representar o ranking dos países por meio de um histograma (ver abaixo). Note a concentração da maioria dos países no primeiro intervalo de classe, que abrange os países com médias de velocidade de download entre zero e 500 KBps.
Para os que ainda acham possível comparar o Brasil com a Etiópia, vale consultar os números de 2010 da ITU. No ano passado, segundo a ITU, a Etiópia tinha em todo o país 4.100 assinaturas de banda larga fixa (o equivalente a 50 prédios de 20 andares, quase um bairro de São Paulo), com uma penetração de Internet da ordem de 0,75 usuário por cem habitantes. Na mesma lista, o Brasil aparece com 14,1 milhões de assinaturas de banda larga fixa e uma penetração de 40,65 usuários de Internet por cem habitantes. Entre o grupo de países com médias semelhantes de velocidade de download, o Brasil se destaca pelo número de assinantes e pela penetração da Internet entre a população (ver tabela abaixo).
Uma lan house na Etiópia
Para terminar, uma consulta aos sites Internet World Stats e OpenNet dão uma ideia de como é a Internet na Etiópia. Dos 85,2 milhões de habitantes que o país tinha em 2009, 360 mil (0,4% da população) acessam a Internet. É a segunda menor penetração de Internet na África abaixo do Saara. Três quartos dos Internet cafés estão na capital Adis Abeba e a velocidade média dessas conexões em 2007 era de 5 KBps. Conexões de satélite existem, mas são permitidas apenas a algumas grandes corporações – provavalmente, as que participaram da pesquisa da Pando Networks. De acordo com o site da operadora local Ethio Telecom, uma conexão ADSL de 512 Kbits por segundo e teto de download de 2 GB tem uma taxa de assinatura de 400 Birr (cerca de 42 reais), mais uma conta mensal de outros 400 birr. O megabyte que ultrapassar a franquia custa 0,23 birr (0,025 centavos de real). Há opções de conexão de 1 Mbps e 2 Mbps, e só.
De resto, o desapontamento não é apenas nosso, como explicou o CEO da Pando, Robert Levitan, na apresentação do estudo:
“As disparidades que encontramos foram chocantes. Embora, em geral, os países desenvolvidos superem o mundo em desenvolvimento nas velocidades médias de download, grandes nomes como Estados Unidos, Reino Unido, França, China e Canadá nem chegaram perto dos mais rápidos. Em vez disso, nós vimos altas velocidades em mercados como a Europa Oriental, onde o foco no desenvolvimento da infraestrutura e geografia favorável promovem um nível maior de conectividade.”
É certo que estamos bem distantes do Primeiro Mundo. Mas será que alguém trocaria a banda larga de São Paulo pela de Adis Abeba? Eu acho que não.
Fonte:Numeralia